sábado, 26 de novembro de 2016

Escrevo, por quê?


Depoimento para o Projeto Literatura Mútua- 16 de novembro- Galeria Trapiche, São Luís

      Qual é a primeira experiência de leitura que lembro?
Cena doméstica, meu pai era leitor assíduo, aquele que lê porque ama as narrativas, os dramas, as comédias. Minha mãe, educadora por alma e vocação, se obrigava a ler os vanguardistas e os clássicos. Morava no centro de São Luís em casa com uma estante enorme, móvel antigo instalado na sala, que me era próprio para escalar, desde pequena, para pegar os livros ditos proibidos para crianças, deixando de lado o indefectível Tesouro da Juventude ao alcance de todos.       

     Qual minha relação com os livros (objetos) e a leitura?
Enquanto objetos para serem consumidos eram prioritários no ambiente familiar. Pela disciplina materna tínhamos horários dedicados para leitura. O mais interessante eram minhas interpretações dos personagens. A boneca de Monteiro Lobato entrava pela cozinha, com copo de pinga, proseava com Visconde sentada na copa e se escondia no quintal com Saci. Mas eu misturava os personagens com outros, tudo vestida e maquiada como tal. Eduquei meu filho ainda de modo mais radical. Cultura e alimentação eram prioritários. Geram corpos saudáveis. Sem preço. Porém nada de consumo de superficialidades.   

Por que comecei a escrever/criar?

No colégio Santa Teresa tive uma mestra, madre Pinheiro se chamava. Era fera. As leituras eram feitas em voz alta e líamos de tudo. Além disso ela mantinha um regime de redações semanais. Ouvi uma fofoca de que ela morreu muito cedo. Certamente que não era deste mundo, de bolhas fora da matriz primária. Um detalhe importante: não gosto de diários.  Na dança contemporânea viraram moda, via os financiamentos divergentes do Itaú Cultural. Mas sou adepta das cartas até hoje. Falo por e-mail como se fossem cartas. 


Minha relação com o que escrevo/crio/enceno?

Pela afetividade, seguida por novas percepções. Mantenho canais abertos para o quê vou reconhecendo como importante naquele momento. Pois tudo é momentâneo. Vide nossa condição humana. Mas por ser uma artista do movimento o ato de sentar, e parar, por permanentes longos períodos me faz sofrer muito. Os textos giram em minha mente. Como se as palavras fossem agora os entes dançantes. Tanto que inventei lançamentos com performances simultâneas. Apelidei o novo livro de “dançante”.



     Quero ser lido/visto? Por quê?
Pelos mesmos motivos porque danço ou faço outros dançarem com pedagogias múltiplas. Passarem pelas experiências de modo que atravessem seus corpos. Que não se condicionem às leituras impostas, que sigam caminhos diferenciados, que não se amorteçam, não se solidifiquem. Daí sigo como uma educadora da constância, para vencer o medo da diferença. Quando comecei a estudar as dramaturgias que propunha reconheci as neurociências, e seus experimentos, como estudos importantes para minhas pretensões, e mantenho ainda hoje.



     
Talita Guimarães, idealizadora do projeto Literatura Mútua 
O que desejo aos que me leem/veem?

Posso me considerar afortunada pelos mestres que experimentaram junto comigo processos de construção artística, mas conciliando a experiência/mente e corpo/matéria. Processos materialistas, mas nunca reducionistas, dinâmicas cerebrais das quais emergem emoções e sentimentos. Por isso sou muito crítica com relação aos trabalhos que supõem dramaturgias que ditam posturas e atitudes sem serem esgotadas as possibilidades de buscas. Foram das neurociências que as dramaturgias de corporeidades buscaram caracteres necessariamente corporais para as experiências mentais (vide Varela, Damásio, Greiner, Hercoles, a escola de Angel Vianna, o sistema Rio Aberto de Maria Adela Palcos, a antropologia teatral de Eugenio Barba e Julia Varley).        

      Qual meu livro, personagem, trecho preferido de livro?

Milhares...os contos de fadas celtas, as mil e uma noites, Grimm, Andersen, mitologias, mitos e lendas brasileiras, Luis da Camara Cascudo e Silvio Romero, Monteiro Lobato. De meu pai herdei leituras em voz alta da Montanha Mágica, de Thomas Mann, e os novelistas brasileiros, incluindo Érico Veríssimo, Rubem Fonseca, Dalton Trevisan. Com minha mãe vieram Saramago, Euclides da Cunha, Machado, Jorge Amado, Frei Betto, Boff, Zweig. No teatro mergulhei nas tragédias, fascinada pelos signos femininos Ifigênia, Antígona, Electra, Medéia. Fui seguindo com Brecht, Boal, Barba, Burnier, chamo de ciclo “casa de João”, meu irmão que morava no Rio e me acolheu quando me mudei em busca de novas trilhas. Continuo descobrindo literatura brasileira em Ana Miranda, Isaías Pessotti, Contardo Calligaris. Na cabeceira a poeta que me ilumina Anna Akhmátova. Dela é meu réquiem, escrito em 1935. Ou o Bhagavad Ghita e os livros do Dalai Lama e do Chagdud Tulku cujos ensinamentos alimentam o cotidiano. Escondido está o Diário de Moscou, de Walter Benjamin que releio com prazer. Agora por conta da pesquisa da investigação que encerra a trilogia do sentimento feminino estou às voltas com a historiadora Natalie Zemon Davies, Nas Margens, comportamentos de mulheres do século XVII. Bem se vê que mesmo sendo uma artista do movimento devoro literaturas e livros.