Depoimento para o Projeto Literatura Mútua- 16 de novembro- Galeria Trapiche, São Luís
Qual é a primeira experiência de
leitura que lembro?
Cena doméstica, meu pai era
leitor assíduo, aquele que lê porque ama as narrativas, os dramas, as comédias.
Minha mãe, educadora por alma e vocação, se obrigava a ler os vanguardistas e
os clássicos. Morava no centro de São Luís em casa com uma estante enorme,
móvel antigo instalado na sala, que me era próprio para escalar, desde pequena,
para pegar os livros ditos proibidos para crianças, deixando de lado o
indefectível Tesouro da Juventude ao
alcance de todos.
Qual minha relação com os livros
(objetos) e a leitura?
Enquanto objetos para serem consumidos eram
prioritários no ambiente familiar. Pela disciplina materna tínhamos horários
dedicados para leitura. O mais interessante eram minhas interpretações dos
personagens. A boneca de Monteiro Lobato entrava pela cozinha, com copo de pinga, proseava com Visconde sentada na
copa e se escondia no quintal com Saci. Mas eu misturava os personagens com
outros, tudo vestida e maquiada como tal. Eduquei meu filho ainda de modo mais
radical. Cultura e alimentação eram prioritários. Geram corpos saudáveis. Sem
preço. Porém nada de consumo de superficialidades.
Por que comecei a escrever/criar?
No colégio Santa Teresa tive uma
mestra, madre Pinheiro se chamava. Era fera. As leituras eram feitas em voz alta
e líamos de tudo. Além disso ela mantinha um regime de redações semanais. Ouvi
uma fofoca de que ela morreu muito cedo. Certamente que não era deste mundo, de
bolhas fora da matriz primária. Um detalhe importante: não gosto de diários. Na dança contemporânea viraram moda, via os
financiamentos divergentes do Itaú Cultural. Mas sou adepta das cartas até
hoje. Falo por e-mail como se fossem cartas.
Minha relação com o que
escrevo/crio/enceno?
Pela afetividade, seguida por
novas percepções. Mantenho canais abertos para o quê vou reconhecendo como
importante naquele momento. Pois tudo é momentâneo. Vide nossa condição humana.
Mas por ser uma artista do movimento o ato de sentar, e parar, por permanentes
longos períodos me faz sofrer muito. Os textos giram em minha mente. Como se as
palavras fossem agora os entes dançantes. Tanto que inventei lançamentos com
performances simultâneas. Apelidei o novo livro de “dançante”.
Quero ser lido/visto? Por quê?
Pelos mesmos motivos porque danço
ou faço outros dançarem com pedagogias múltiplas. Passarem pelas experiências
de modo que atravessem seus corpos. Que não se condicionem às leituras
impostas, que sigam caminhos diferenciados, que não se amorteçam, não se
solidifiquem. Daí sigo como uma educadora da constância, para vencer o medo da
diferença. Quando comecei a estudar as dramaturgias que propunha reconheci as
neurociências, e seus experimentos, como estudos importantes para minhas
pretensões, e mantenho ainda hoje.
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Talita Guimarães, idealizadora do projeto Literatura Mútua |
O que desejo aos que me leem/veem?
Posso me considerar afortunada
pelos mestres que experimentaram junto comigo processos de construção
artística, mas conciliando a experiência/mente e corpo/matéria. Processos
materialistas, mas nunca reducionistas, dinâmicas cerebrais das quais emergem emoções
e sentimentos. Por isso sou muito crítica com relação aos trabalhos que supõem
dramaturgias que ditam posturas e atitudes sem serem esgotadas as
possibilidades de buscas. Foram das neurociências que as dramaturgias de
corporeidades buscaram caracteres necessariamente corporais para as
experiências mentais (vide Varela, Damásio, Greiner, Hercoles, a escola de
Angel Vianna, o sistema Rio Aberto de Maria Adela Palcos, a antropologia
teatral de Eugenio Barba e Julia Varley).
Qual meu livro, personagem,
trecho preferido de livro?
Milhares...os contos de fadas
celtas, as mil e uma noites, Grimm, Andersen, mitologias, mitos e lendas
brasileiras, Luis da Camara Cascudo e Silvio Romero, Monteiro Lobato. De meu
pai herdei leituras em voz alta da Montanha
Mágica, de Thomas Mann, e os novelistas brasileiros, incluindo Érico
Veríssimo, Rubem Fonseca, Dalton Trevisan. Com minha mãe vieram Saramago,
Euclides da Cunha, Machado, Jorge Amado, Frei Betto, Boff, Zweig. No teatro
mergulhei nas tragédias, fascinada pelos signos femininos Ifigênia, Antígona,
Electra, Medéia. Fui seguindo com Brecht, Boal, Barba, Burnier, chamo de ciclo
“casa de João”, meu irmão que morava no Rio e me acolheu quando me mudei em
busca de novas trilhas. Continuo descobrindo literatura brasileira em Ana
Miranda, Isaías Pessotti, Contardo Calligaris. Na cabeceira a poeta que me
ilumina Anna Akhmátova. Dela é meu réquiem, escrito em 1935. Ou o Bhagavad Ghita e os livros do Dalai Lama
e do Chagdud Tulku cujos ensinamentos alimentam o cotidiano. Escondido está o Diário de Moscou, de Walter Benjamin que releio com prazer. Agora por
conta da pesquisa da investigação que encerra a trilogia do sentimento feminino
estou às voltas com a historiadora Natalie Zemon Davies, Nas Margens, comportamentos de mulheres do século XVII. Bem se vê
que mesmo sendo uma artista do movimento devoro literaturas e livros.
